Fisiologia dos Órgãos dos Sentidos em Animais Domésticos Notas de Aula

 

Fisiologia dos Órgãos dos Sentidos em Animais Domésticos

Notas de Aula

A fisiologia sensorial é uma das áreas mais fascinantes da medicina veterinária, revelando como os animais percebem o mundo ao seu redor. A capacidade de ver, ouvir, cheirar e manter o equilíbrio não é apenas essencial para a sobrevivência animal, mas também um indicativo funcional da integridade neurossensorial. Neste artigo, apresento uma abordagem narrativa, integrando bases moleculares, vias neurais e relevância clínica dos principais sentidos especiais nos animais domésticos.

Mecanismos Fisiológicos da Visão em Animais Domésticos

A jornada visual tem início na interação da luz com estruturas altamente especializadas do olho. A luz, ao atravessar a córnea e o cristalino, sofre refração e incide sobre a retina, onde ocorre a transdução luminosa. Os fotorreceptores da retina, bastonetes e cones, são responsáveis por converter energia luminosa em sinais elétricos. Bastonetes, ricos em rodopsina, são adaptados para baixa luminosidade, enquanto cones, que expressam diferentes fotopsinas, possibilitam a visão de cores em alta intensidade luminosa.

A fototransdução inicia-se com a isomerização do 11-cis-retinal para all-trans-retinal ao absorver um fóton. Isso altera a conformação da opsina, ativando a proteína G transducina. Esta, por sua vez, estimula a fosfodiesterase (PDE), que reduz os níveis de GMPc intracelular. Com menos GMPc, os canais catiônicos de Na⁺/Ca²⁺ se fecham, levando à hiperpolarização da célula e à redução da liberação de glutamato nas sinapses com as células bipolares. Os sinais seguem para o nervo óptico (II), passam pelo quiasma óptico — onde cerca de 60% das fibras decussam em carnívoros —, alcançam o núcleo geniculado lateral no tálamo e, finalmente, o córtex visual no lobo occipital.

Esse processo, embora complexo, é vital para a funcionalidade comportamental dos animais. Por exemplo, em cães com deficiência de vitamina A, a regeneração do retinal é comprometida, levando à cegueira noturna. Em equinos idosos, alterações na acomodação do cristalino podem resultar em presbiopia, dificultando o reconhecimento de obstáculos à distância.

Aspectos Fisiológicos e Moleculares do Sistema Olfativo

O olfato animal é um dos sentidos mais desenvolvidos, especialmente em cães, cuja mucosa olfativa pode conter mais de 300 milhões de receptores. Esses receptores pertencem à superfamília dos GPCRs (receptores acoplados à proteína G). A ligação de odorantes ativa a proteína G_olf, que estimula a adenilil ciclase, aumentando a produção de AMPc. Este, por sua vez, abre canais CNG (canais catiônicos dependentes de nucleotídeos cíclicos), permitindo o influxo de Na⁺ e Ca²⁺. O Ca²⁺ ativa canais de Cl⁻, amplificando o sinal e gerando um potencial receptor que atinge o bulbo olfativo via nervo olfatório (I).

Além do epitélio olfativo principal, o órgão vomeronasal (VNO) detecta feromônios — informações químicas cruciais para comportamento reprodutivo e social. Feromônios ativam receptores V1R e V2R, desencadeando vias dependentes de IP3 e liberação de Ca²⁺ intracelular. O reflexo de Flehman, observado em equinos e bovinos, manifesta-se como elevação do lábio superior para facilitar o direcionamento dos feromônios ao VNO.

Essa via tem implicações clínicas: fêmeas felinas sincronizam seu ciclo estral em resposta ao feromônio felinina. Já cães com hipoplasia do bulbo olfatório, condição diagnosticável por ressonância magnética, podem apresentar anosmia, afetando seu desempenho em atividades de faro, como busca e resgate ou caça.

Fisiologia da Audição e Transdução Coclear

O som é percebido graças à intrincada estrutura do ouvido, dividido em externo, médio e interno. As ondas sonoras são coletadas pelo pavilhão auricular, canalizadas pelo meato acústico até a membrana timpânica, cuja vibração movimenta a cadeia ossicular (martelo, bigorna e estribo). Essa vibração é amplificada e transmitida à janela oval da cóclea.

Na cóclea, o movimento dos líquidos — endolinfa (rica em K⁺) e perilinfa (rica em Na⁺) — provoca a deflexão da membrana basilar, movimentando os estereocílios das células ciliadas no órgão de Corti. A deflexão abre canais TRPA1 conectados por tip links, permitindo o influxo de potássio da endolinfa, levando à despolarização celular e à liberação de glutamato. A ativação do nervo coclear (VIII par craniano) propaga o sinal até os núcleos cocleares, colículo inferior, núcleo geniculado medial e finalmente ao córtex auditivo.

A cóclea possui uma organização tonotópica: a base responde a altas frequências e o ápice a sons graves. Tal mapeamento é fundamental para a localização sonora. Disfunções nessa via resultam em patologias como a surdez congênita observada em Dálmatas, muitas vezes ligada à ausência de melanócitos na estria vascular, essencial para manter o gradiente eletroquímico da endolinfa.

Sistema Vestibular e Mecanismos de Equilíbrio

O sistema vestibular, alojado no ouvido interno, inclui os canais semicirculares e os órgãos otolíticos (utrículo e sáculo). Os canais semicirculares detectam aceleração angular da cabeça, enquanto os otólitos percebem a aceleração linear e a posição relativa à gravidade.

As células ciliadas dessas estruturas, ao serem defletidas pela movimentação da endolinfa, geram potenciais de ação que são conduzidos pela porção vestibular do VIII par até os núcleos vestibulares no tronco encefálico. Esses sinais se projetam ao cerebelo para ajustes motores, aos núcleos oculomotores para o reflexo vestíbulo-ocular e à medula espinhal para manutenção do tônus postural.

Clinicamente, equinos com deslocamento de otólitos podem apresentar nistagmo espontâneo e ataxia vestibular. Em bovinos com otites internas crônicas, o comprometimento vestibular resulta em desvio de cabeça e inclinação postural persistente.

Integração Sensorial Central e Modulação Neuroquímica

Os sentidos não operam isoladamente. A integração sensorial é orquestrada principalmente pelo tálamo e pelo córtex associativo parietotemporal. A visão colabora com o sistema vestibular para estabilizar imagens (reflexo vestíbulo-ocular), enquanto o olfato modula comportamentos instintivos como acasalamento e marcação territorial.

Neurotransmissores como glutamato, GABA, dopamina e substância P são cruciais nesse processo. GABA inibe ruídos sensoriais irrelevantes, enquanto glutamato excita vias sensoriais relevantes. A substância P, por outro lado, amplifica estímulos nociceptivos associados a lesões em vias sensoriais.

Quadro 1: Neurotransmissores e suas Funções nos Sistemas Sensoriais

Sistema

Neurotransmissores Principais

Função

Visão

Glutamato, GABA

Excitação e modulação sináptica retinal

Olfato

Glutamato, Neuromoduladores

Codificação hedônica e reprodutiva

Audição

Glutamato, Glicina

Sinapse rápida e modulação coclear

Equilíbrio

Glutamato, GABA

Integração vestibular e motora

O quadro acima resume os principais neurotransmissores envolvidos na sinalização sensorial e suas respectivas funções. No sistema visual, o glutamato é liberado continuamente pelos fotorreceptores no escuro e sua liberação diminui com a luz, permitindo que as células bipolares detectem mudanças na luminosidade. GABA atua inibindo interneurônios na retina, refinando a acuidade visual. No olfato, além do glutamato nas sinapses olfatórias, neuromoduladores como dopamina e opioides ajustam a intensidade e a significância emocional dos odores, principalmente no bulbo olfatório. Na audição, o glutamato liberado pelas células ciliadas excita fibras aferentes do nervo coclear, enquanto a glicina atua como inibidor em núcleos do tronco encefálico, promovendo precisão temporal na localização do som. No equilíbrio, glutamato excita as vias vestibulares, e GABA modula reflexos e respostas posturais em centros superiores, como o cerebelo.

Quadro 2: Transdução e Vias Aferentes dos Sentidos

Sistema

Tipo de Transdução

Via Aferente Principal

Visão

Fotoquímica (rodopsina/transducina)

Retina → Nervo óptico II → Tálamo → Córtex occipital

Olfato

Quimiossensorial (GPCRs/AMPc)

Receptores olfativos → Nervo I → Bulbo → Córtex olfatório

Audição

Mecanoelétrica (TRPA1/endolinfa)

Cóclea → Nervo VIII → Tronco encefálico → Córtex auditivo

Equilíbrio

Mecanoelétrica (endolinfa/otólitos)

Labirinto → Nervo VIII → Núcleos vestibulares → Cérebro

A tabela sintetiza o mecanismo de transdução e o trajeto neural aferente de cada sistema sensorial. Na visão, a fototransdução depende da isomerização do retinal e da ativação da cascata transducina-GMPc. No olfato, moléculas odorantes ativam receptores GPCR, desencadeando a produção de AMPc e despolarização via canais CNG. Na audição, o som deflete estereocílios das células ciliadas, que abrem canais TRPA1 sensíveis à tensão, permitindo a entrada de K⁺ e Ca²⁺. Já no equilíbrio, a movimentação da endolinfa e dos otólitos provoca deflexão dos cílios, ativando potenciais de ação que seguem pelo nervo vestibular. Todas essas vias convergem em áreas corticais específicas, permitindo a percepção e resposta adaptativa do organismo.

Aplicações Clínicas na Medicina Veterinária Sensorial

A compreensão dos mecanismos fisiológicos sensoriais é essencial para interpretar sinais clínicos e elaborar diagnósticos precisos. A surdez congênita, a anosmia, a cegueira noturna e as vestibulopatias são apenas alguns exemplos de como a falha em componentes moleculares ou anatômicos dos sistemas sensoriais pode comprometer a qualidade de vida animal.

  • Em cães, aminoglicosídeos como gentamicina podem causar ototoxicidade, lesando células ciliadas vestibulares e cocleares.

  • Em gatos, alterações auditivas por toxicidade ou traumas resultam em dificuldade de orientação espacial.

  • Em equinos, infecções do ouvido médio podem afetar estruturas vestibulares e causar claudicação aparente por desequilíbrio.

  • Em bovinos, a deficiência de vitamina A leva a alterações oculares e dificuldade de adaptação luminosa.

Conclusão

Estudar os sentidos animais é mergulhar em uma sinfonia neuroquímica que conecta o ambiente ao comportamento. A fisiologia sensorial não é apenas teoria, mas uma ferramenta clínica poderosa que, quando dominada, permite ao veterinário diagnosticar e intervir com precisão em desordens neurossensoriais. Decifrar esses mecanismos é decifrar o próprio mundo sensorial de nossos pacientes animais.



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