Fisiologia da Regulação Térmica em Mamíferos Domésticos

Fisiologia da Regulação Térmica em Mamíferos Domésticos: Mecanismos Fisiológicos, Bioquímicos e Aplicações Práticas  

A regulação térmica em mamíferos domésticos é um processo complexo que integra sistemas fisiológicos, bioquímicos e comportamentais para manter a homeostase corporal frente a variações ambientais. Este equilíbrio é fundamental tanto para a produtividade animal (bovinos e suínos) quanto para a saúde de animais de companhia (cães e gatos). Abaixo, exploramos em detalhes os mecanismos envolvidos, com ênfase em aspectos moleculares, celulares e sistêmicos.  

 1. Termogênese e Termólise: Bases Fisiológicas e Bioquímicas  


Produção de Calor Endógeno (Termogênese)  

A termogênese ocorre principalmente no fígado, músculos e tecido adiposo marrom (BAT), sendo regulada por vias hormonais e neuronais.  


 Tecido Adiposo Marrom (BAT):  

  Presente em neonatos (leitões, bezerros, filhotes de cães e gatos), o BAT contém mitocôndrias com proteína desacopladora 1 (UCP1), que dissipa o gradiente de prótons da cadeia respiratória, convertendo energia em calor. Em leitões mantidos abaixo de 34°C, a ativação do BAT aumenta a lipólese via hormônio tireoidiano (T3), que estimula receptores β3adrenérgicos, liberando ácidos graxos como substrato para UCP1. Cada grama de BAT pode gerar 300–500 J/min, essencial para sobrevivência neonatal. Imagine o BAT como um cobertor interno que alguns animais usam para se aquecer. Esse tecido é rico em mitocôndrias, as "usinas de energia" das células, e contém uma proteína especial chamada UCP1 (Proteína Desacopladora 1).  Funcionamento da UCP1: Normalmente, as mitocôndrias produzem ATP (a moeda energética das células) usando um gradiente de prótons (como uma bateria carregada). A UCP1, porém, "fura" essa bateria, dissipando a energia em vez de armazenála. Resultado: o calor é liberado.  


 Termogênese por Tremor e sem Tremor:  

Em animais adultos, como vacas ou cães, o BAT é menos ativo. Nesses casos, o frio faz os músculos tremerem involuntariamente. Cada tremoresinho é como um miniexercício que consome energia (glicose e gordura) e libera calor.  

Em bovinos expostos ao frio, a ativação do sistema nervoso simpático libera noradrenalina, que estimula a fosforilação de proteínas quinases (PKA) no músculo esquelético, aumentando a atividade da ATPase de cálcio (SERCA) e a produção de calor.  A noradrenalina (hormônio do estresse) ativa enzimas no músculo, como a ATPase de cálcio, que consomem ATP rapidamente, gerando calor como subproduto. 

Dissipação de Calor (Termólise)  

A termólise envolve mecanismos físicos e bioquímicos para eliminar calor excessivo:  

 Sudorese em Bovinos:  

Bovinos suam muito, mas seu suor não é igual ao nosso. Ele é rico em sódio e bicarbonato, minerais que ajudam a equilibrar o pH do corpo.  

 Passo a passo da sudorese:  

  1. O cérebro (hipotálamo) detecta o calor.  

  2. Envia um sinal via sistema nervoso para as glândulas sudoríparas.  

  3. A acetilcolina (um neurotransmissor) abre canais de cálcio nas células das glândulas.  

  4. Sais e água são liberados na pele, evaporam e resfriam o corpo.  

Curiosidade: Em um dia quente, uma vaca perde até 15 litros de suor!    

As glândulas sudoríparas écrinas dos bovinos secretam suor rico em sódio (Na⁺), cloreto (Cl⁻) e bicarbonato (HCO₃⁻). A produção é mediada pela acetilcolina, que ativa receptores muscarínicos (M3) nas células epiteliais das glândulas, promovendo a entrada de cálcio (Ca²⁺) e a exocitose de íons e água. Em temperaturas >25°C, um bovino adulto pode perder 10–15 L de suor/dia, mas a eficiência é limitada em alta umidade, onde a evaporação é reduzida.  


 Ofego em Cães e Suínos:  

  O "arcondicionado" respiratório dos cães, pois estes não suam como nós. Em vez disso, eles ofegam, usando a evaporação da água do pulmão para resfriar o sangue. 

   Cada grama de água evaporada remove 2.400 joules de calor (equivalente a 1/4 de uma colher de chá de água fervente!).  

   Mas atenção: Respirar rápido demais reduz o CO₂ no sangue, causando alcalose (sangue muito alcalino). Para corrigir isso, os rins excretam bicarbonato na urina, um processo que pode levar hora

O ofego (termólise evaporativa) depende da evaporação da água do trato respiratório. Em cães, a frequência respiratória pode atingir 300–400 incursões/minuto, aumentando a perda de calor em 5–10 vezes. O processo é regulado por neurônios do núcleo parabraquial no tronco cerebral, que modulam a atividade do centro respiratório em resposta a sinais hipotalâmicos. Cada grama de água evaporada remove 2,4 kJ de calor, mas pode levar a alcalose respiratória (↓pCO₂, ↑pH), exigindo compensação renal (excreção de HCO₃⁻).  


 2. Regulação Neural: Papel do Hipotálamo e Neurotransmissores  

O hipotálamo anterior integra sinais de termorreceptores periféricos (pele) e centrais (vísceras, medula), ajustando respostas autonômicas e endócrinas.  

 Resposta ao Calor

  Quando a temperatura corporal excede o setpoint hipotalâmico (ex.: 39°C em bovinos), neurônios GABAérgicos inibem a via simpática e ativam a via parassimpática, resultando em:  

  I. Vasodilatação cutânea: Mediado por óxido nítrico (NO), que relaxa o músculo liso vascular via ativação da guanilato ciclase e aumento de GMPc.  

  II. Sudorese: Liberação de acetilcolina pelas fibras pósganglionares simpáticas.  

  III. Redução do metabolismo: Supressão da tireóide via diminuição de TRH (hormônio liberador de tireotropina).  


 Resposta ao Frio

  O hipotálamo posterior ativa o sistema simpático, liberando noradrenalina e neuropeptídeo Y (NPY), que induzem:  

  A. Vasoconstrição periférica: Via receptores α1adrenérgicos, reduzindo perda de calor.  

  B. Termogênese no BAT: Ativação de receptores β3adrenérgicos por noradrenalina.  

  C. Calafrios: Contração rítmica de fibras musculares tipo IIb, gerando calor sem movimento.  


 3. Hormônios e Sinalização Molecular  

 Hormônios Tireoidianos (T3 e T4) 

  Em temperaturas frias, o eixo hipotálamohipófisetireóide é ativado. O hormônio liberador de tireotropina (TRH) estimula a secreção de TSH, que induz a tireóide a produzir tetraiodotironina (T4). A conversão periférica de T4 em triiodotironina (T3), pela enzima 5'desiodase (dependente de selênio), aumenta o metabolismo basal em 20–30% em bezerros. A T3 ativa genes termogênicos (ex.: UCP1, PGC1α) via receptores nucleares (TRα e TRβ).  

 Cortisol

  Liberado pelo eixo Hipotálamo-Hipófise- Adrenal em resposta ao estresse térmico, o cortisol induz gliconeogênese hepática e lipólise (via ativação de lipase hormôniosensível). Em suínos expostos a 35°C, níveis elevados de cortisol suprimem a síntese de IGF1, reduzindo o ganho de peso muscular.  

Em dias quentes, o cortisol sobe, preparando o corpo para crises:  
1. No fígado, ele ativa a gliconeogênese, transformando proteínas em glicose para energia rápida.  
2. Nos músculos, ele inibe a síntese de proteínas, desviando recursos para sobrevivência.  
 Consequência em suínos: Porcos sob calor produzem menos músculo (carne), pois o cortisol "rouba" aminoácidos para fazer glicose.

 Leptina e Adiponectina

  Adipocinas secretadas pelo tecido adiposo branco modulam o apetite e a termogênese. Em cães obesos, a resistência à leptina reduz a termogênese, exacerbando o risco de hipertermia.  

 4. Impacto do Estresse Térmico no Metabolismo Celular  


Hipertermia e Estresse Oxidativo  

Temperaturas acima da zona termoneutra (>25°C em bovinos) induzem:  

 Desnaturação Proteica: Proteínas de choque térmico (HSP70) são sintetizadas para reparar danos.  Temperaturas acima de 40°C desnaturam proteínas, como se fossem ovos sendo fritos. Para evitar isso, as células produzem HSP70 (Proteínas de Choque Térmico 70), que funcionam como "mãos" que dobram as proteínas corretamente. Exemplo em vacas leiteiras: Durante ondas de calor, a HSP70 protege as enzimas do úbere que produzem leite, evitando perdas drásticas na produção.

 Mitocôndrias e ROS: O calor acelera o metabolismo, gerando espécies reativas de oxigênio (ROS), moléculas instáveis que danificam membranas e DNA.  

Antioxidantes como a vitamina E neutralizam os ROS. Em suínos, a suplementação com vitamina E reduz lesões no fígado causadas pelo calor. 

 O aumento da temperatura acelera a cadeia respiratória, gerando espécies reativas de oxigênio (ROS) como O₂⁻ e H₂O₂. Em suínos, a suplementação com vitamina E (αtocoferol) neutraliza ROS, prevenindo peroxidação lipídica em membranas celulares.  


Hipotermia e Disfunção Mitocondrial  


Temperaturas abaixo da zona termoneutra (<15°C em suínos adultos) reduzem a atividade da citocromo c oxidase (Complexo IV), limitando a produção de ATP. Leitões hipotérmicos (<34°C) apresentam hipoglicemia devido ao consumo acelerado de glicogênio hepático, agravada pela inibição da gliconeogênese (↓ atividade da piruvato carboxilase).  

 5. Adaptações Específicas por Espécie  


Bovinos Leiteiros  

Seu segredo está nas glândulas sudoríparas superativas. Mas em alta umidade, o suor não evapora, e o animal entra em estresse.  

 Solução prática: Aspersores de água combinados com ventiladores criam uma "brisa úmida" artificial, imitando a evaporação natural.

   Efeito do THI (Temperature Humidity Index): Valores de THI >72 (ex.: 25°C + 60% UR) reduzem a produção de leite em 3–5% devido à supressão da prolactina, hormônio crítico para síntese de lactose.  

 Acidose Rumenal: O estresse térmico reduz a motilidade ruminal, acumulando ácidos graxos voláteis (AGV) e diminuindo o pH ruminal (<5,5), o que inibe bactérias celulolíticas.  


Suínos  

Por não suarem, os porcos rolam na lama para resfriar o corpo por condução térmica (transferência de calor para a lama). A lama também protege contra queimaduras solares!  Em hipertermia, a vasodilatação periférica desvia sangue dos órgãos internos, causando hipóxia intestinal e translocação bacteriana (ex.: E. coli).  

 BAT em Leitões Neonatos: A termogênese no BAT consome 60–70% da ingestão energética nas primeiras 48 horas de vida, tornendoos vulneráveis à hipotermia se o ambiente não for controlado.  


Cães e Gatos  

Raças como Bulldog têm vias aéreas estreitas, dificultando o ofego. Sem resfriamento adequado, o sangue fica ácido (acidose), e órgãos como o cérebro podem sofrer danos. 

 Síndrome Braquicefálica estes cães  têm estenose de narinas e palato alongado, limitando a termólise evaporativa. A hipóxia resultante estimula a via das fosfoinositídeos (PI3K/Akt), aumentando a angiogênese patológica nas vias aéreas.  

 Gatos e Taurina: O ofego reduzido em gatos exige maior dependência de vasodilatação periférica, processo que consome taurina (aminoácido essencial), podendo levar à cardiomiopatia dilatada se a dieta for deficiente. Gatos raramente ofegam. Em vez disso, usam vasodilatação nas patas (aumento do fluxo sanguíneo) para liberar calor. Porém, isso consome taurina, um aminoácido essencial para o coração. Dietas pobres em taurina podem levar a doenças cardíacas. 


 6. Intervenções Baseadas em Evidências  


Produção Animal  

 Resfriamento Evaporativo para Bovinos: Sistemas de aspersão (3 ciclos de 2 min/hora) reduzem a temperatura da pele em 2–4°C e aumentam a produção de leite em 1,5 kg/dia.  Sombra e ventilação reduzem a temperatura ambiente.  

   Eletrólitos na água: Repõem sódio e bicarbonato perdidos no suor.  

 Aquecimento Radiante para Leitões: Lâmpadas de infravermelho mantêm a zona termoneutra (34°C), reduzindo o uso de BAT e melhorando a conversão alimentar (1,2 kg ração/kg ganho). 

   Lâmpadas de infravermelho: Mantêm a temperatura ideal sem secar o ambiente.  
   Rações com óleo de coco: Fornecem ácidos graxos de rápida queima para o BAT.  

Animais de Companhia  

 Hidratação Intravenosa em Cães Hipertérmicos: Soluções isotônicas (Ringer lactato) com 5% de dextrose repõem glicogênio hepático e corrigem acidose.  Toalhas úmidas nas patas resfriam o sangue diretamente.  Cuidado: Evitar gelo abrupto o choque térmico pode piorar a vasoconstrição.  

 Ambientes Enriquecidos para Gatos: Superfícies frias (cerâmica) e sombra artificial reduzem a carga térmica em 15–20%.  

6. Estudos de Caso  

Caso 1: Hipertermia em Vacas Leiteiras  
- Sintomas: Respiração ofegante (>80/min), redução de 40% na ingestão de matéria seca.  
- Intervenção: Instalação de ventiladores + aspersores no curral. Resultado: Aumento de 15% na produção de leite.  

Caso 2: Choque Térmico em Cão Bulldog Francês  
- Sintomas: Taquicardia (180 bpm), temperatura retal 42°C.  
- Intervenção: Resfriamento gradual com água fria e oxigenoterapia. Recuperação em 12 horas.  

7. Glossário  
1. Zona Termoneutra: Faixa ideal sem gasto energético extra (ex.: 15–25°C para bovinos adultos).  
2. Termólise Evaporativa: Perda de calor por sudorese (bovinos) ou ofego (cães).  
3. Síndrome Braquicefálica: Anomalia anatômica que prejudica a termorregulação.  
4. Índice de Conforto Térmico (THI): Fórmula para avaliar risco de estresse em bovinos (THI = 0,8T + UR%).  

8. Estudo Dirigido

Questão 1: Explique por que a termorregulação é crítica para a produção animal e a saúde de animais de companhia. Cite dois exemplos do texto que ilustram impactos econômicos do estresse térmico em bovinos e suínos.  

Questão 2: Compare os mecanismos de termólise em bovinos, suínos e cães/gatos. Destaque as estruturas anatômicas envolvidas e a eficiência de cada método (ex.: sudorese vs. ofego).  



Questão 3: Descreva o papel do BAT em leitões neonatos. Como a temperatura ambiente abaixo de 34°C afeta o metabolismo energético desses animais? Relacione com a função da UCP1.  

Questão 4: Explique o papel do hipotálamo na resposta ao calor em bovinos. Como as divisões parassimpática e simpática do sistema nervoso autônomo atuam nesse processo?  

Questão 5: Analise os efeitos do cortisol, da tiroxina (T4) e do ADH em diferentes espécies durante o estresse térmico. Por que o cortisol reduz o ganho de peso em suínos?  

Questão 6: Por que bovinos leiteiros têm a produção de leite reduzida em temperaturas >25°C? Relacione com a síntese de caseína. Além disso, explique por que cães braquicefálicos são mais suscetíveis ao choque térmico.  

Questão 7: Discuta os riscos da hipotermia em leitões e gatos filhotes. Como a temperatura <34°C em leitões afeta a mortalidade? E por que a hipotermia em gatos suprime a imunidade?  

Questão 8: Quais são as intervenções recomendadas para bovinos e suínos em ambientes de calor extremo e frio intenso? Explique a eficácia da aspersão de água em ciclos de 3 min/hora para bovinos.  

Questão 9: Elabore um protocolo de prevenção à hipertermia para cães e gatos, considerando as recomendações do texto. Por que coletes refrigerantes são úteis para cães?  

Questão 10: Como o conhecimento sobre os mecanismos de termorregulação específicos de cada espécie pode auxiliar um médico veterinário no manejo de um rebanho bovino em regiões tropicais? Proponha uma estratégia integrada (fisiológica + ambiental).  

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